A NOVA SISTEMÁTICA DE PRECEDENTES OBRIGATÓRIOS E SEUS EFEITOS NA MITIGAÇÃO DO ART. 170-A DO CTN

Sabemos que a compensação representa uma das hipóteses de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156, inciso II, do CTN. Contudo, a utilização desta modalidade extintiva, por anos se apresentou de maneira controversa [e até delicada], na medida em que o Fisco amargou expressivos prejuízos pela autorização da compensação sem a prévia consolidação de mérito quanto ao indébito alegado, situação aproveitada por aqueles contribuintes imbuídos de má-fé, que buscaram administrativamente a compensação de débitos com créditos ainda não efetivamente reconhecidos judicialmente.

Com vistas a coibir esse tipo de abuso, foi editada a LC 104/2001 (incluindo o art. 170-A ao CTN). Sua disposição trouxe inquestionável segurança ao Fisco, pois garantiu que o procedimento de compensação somente poderia ser exigido pelo contribuinte depois do trânsito em julgado do título judicial que reconheceu e declarou o indébito em seu favor, evitando modificações na matéria de mérito que pudessem afetar o indébito.

Para uma melhor compreensão, lembramos que nesta época ainda não estavam previstos os institutos da Repercussão Geral e do Recurso Repetitivo (implementados apenas em 2004, com a EC nº 45). Portanto, inexistia qualquer previsão legal que trouxesse a ideia de precedente vinculante ou definitividade das decisões judiciais, tornando o art. 170-A do CTN na melhor forma de impedir a extinção de débitos com créditos ainda precários.

Em 2004, já com o advento dos chamados “precedentes vinculantes”, a aplicação do citado art. 170-A do CTN passou a contar com certa análise conjunta com o §1º do art. 557 (CPC/73), dando azo à aplicação mitigada quando a matéria discutida decorresse de posicionamento consolidado dos Tribunais Superiores [aqui passamos a compreender a ideia de imutabilidade no pronunciamento judicial, quando das hipóteses destes “precedentes vinculantes”].

Passou-se então a discutir o próprio alcance do termo “do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial”, trazido no bojo do artigo 170-A do CTN. Afinal, nos parece correto afirmar que o termo estaria se referindo ao pronunciamento que resolveu a discussão de determinada matéria, tornando-se, pois, imutável (no caso, aquela proferida em precedente vinculante).

Nesta linha, torna-se mais do que assertiva a possibilidade de ver declarado o direito à compensação do indébito cuja discussão de mérito já esteja resolvida por pronunciamento vinculante do Tribunal Superior.

O raciocínio acima nos permite concluir que, aguardar o trânsito em julgado [do art. 502 e art. 927, ambos do CPC] de decisões cuja matéria já se encontra pacificada na jurisprudência para declarar o direito à compensação, afrontaria diretamente os princípios constitucionais, com especial atenção ao da efetividade jurisdicional.

Inclusive, ao observarmos a reforma do Código de Processo Civil em 2015, criando novos precedentes obrigatórios (como a tutela de evidência; incidentes de resolução de demandas repetitivas, etc), se observa que a citada ponderação entre os dispositivos em análise se tornou mais do que necessária, pelo que a aplicação irrestrita e absoluta do artigo 170-A do CTN não parece ter o mesmo espaço.

Ora, se estar-se-á falando em pronunciamento calcado na definitividade, decorrente de juízo vinculante às instâncias inferiores e tribunais administrativos, qual seria a incerteza capaz de impedir a configuração do indébito?

Neste tipo de situação, ao contrário do direito salvaguardado pelo artigo 170-A do CTN (garantir a definitividade do pronunciamento judicial), os atributos de definitividade com relação ao direito perquirido no writ estão claros, até mesmo porque viabilizariam a concessão da própria tutela de evidência, haja vista as matérias decorrerem de decisões proferidas em sede de recursos repetitivos, repercussão geral e IRDR, portanto, abarcadas de maior certeza.

Estando o mérito da contenda pautado em questão já sedimentada de forma vinculante (e tomando como premissa para nossa análise não se discutir qualquer das questões preliminares ou prejudiciais de mérito dos art. 485 e 487 do CPC), se demonstra viável a concretização de outra garantia fundamental – a entrega da tutela jurisdicional em prazo razoável -, pois inexistentes riscos in reverso ao Fisco.

Situações idênticas a presente se tornaram cada vez mais cotidianas, decorrente de uma análise mais aprofundada do art. 170-A do CTN em harmonia às demais disposições legais aplicáveis ao caso, em especial o próprio art. 311 do CPC, como já fez o próprio E. TRF da 1ª Região – ainda à luz do CPC/73, mas considerando as alterações pela EC 45/04, in verbis:

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. INCIDÊNCIA SOBRE OS QUINZE PRIMEIROS DIAS DE AFASTAMENTO QUE ANTECEDEM A CONCESSÃO DE AUXÍLIO DOENÇA E SOBRE O ABONO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS (1/3). IMPOSSIBILIDADE. VERBAS INDENIZATÓRIAS. SALÁRIO MATERNIDADE E FÉRIAS. CONTRIBUIÇÃO DEVIDA. COMPENSAÇÃO COM QUAISQUER TRIBUTOS ADMINISTRADOS PELA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. IMPOSSIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DO ART. 170-A DO CTN. TAXA SELIC. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO QUINQUENAL ACOLHIDA. (…) V – Tendo em vista que a matéria relativa à exigibilidade de contribuição previdenciária sobre a remuneração paga em virtude do afastamento do empregado no período de quinze dias que antecede a concessão de auxílio doença/acidente, bem assim sobre o abono constitucional de férias (1/3) encontra-se, atualmente, pacificada nos colendos STF e STJ, não se mostra razoável aguardar-se o trânsito em julgado de decisum para a efetivação da compensação do indébito tributário em referência, quando inexistente qualquer possibilidade de alteração da situação jurídica já reconhecida, nos autos. Ademais, segundo a inteligência do art. 557, caput e respectivo §1º, do CPC, o relator negará seguimento a recurso manifestamente em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, ou ainda, estando a decisão recorrida em manifesta contrariedade à súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento, de pronto, ao recurso, pelo que se verifica, assim, a inaplicabilidade do art. 170-A, do CTN, na espécie, diante da perfeita harmonia do acórdão desta 8ª Turma com o entendimento jurisprudencial consolidado nos colendos STF e STJ nesta matéria, a possibilitar a eficácia plena e imediata da garantia fundamental da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII e respectivo §1º) na materialização instrumental do processo justo. (…) VII – Apelações da impetrante, da União Federal e remessa oficial parcialmente providas.”

(TRF1. Apl em MS n. 0014773-57.2010.4.01.3000. Rel.: Des. Fed. Souza Prudente, 8ª Turma, DJe: 25/11/2011)

No mesmo sentido também se destacam julgamentos pela Seção Judiciária de São Paulo[1] e do Rio de Janeiro[2], já à luz do CPC/2015.

Não se afastando do atendimento às citadas garantias fundamentais (do Fisco e do Contribuinte jurisdicionado), nota-se que o CARF[3] – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais –, adotando postura processual felizmente arrojada, passou a reconhecer a viabilidade da compensação de indébitos com outros tributos administrados pela RFB, quando a pretensão vindicada pelo contribuinte decorrer de pronunciamento expresso e consolidado pelo STF em sede de repercussão geral ou pelo STJ em sede de recursos repetitivos de controvérsia (corroborado pelo art. 19, IV e V, da Lei n. 10.522/02), como se destaca:

“PIS. BASE DE CÁLCULO. INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º, DA LEI Nº 9.718/98, QUE AMPLIAVA O CONCEITO DE FATURAMENTO. NÃO INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE RECEITAS NÃO COMPREENDIDAS NO CONCEITO DE FATURAMENTO ESTABELECIDO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PREVIAMENTE À PUBLICAÇÃO DA EC Nº 20/98. A base de cálculo do PIS e da COFINS é o faturamento, assim compreendido a receita bruta das vendas de mercadorias, de serviços e de mercadorias e serviços de qualquer natureza. Inadmissível o conceito ampliado de faturamento contido no § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98, uma vez que referido dispositivo foi declarado inconstitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Diante disso, não poderão integrar a base de cálculo da contribuição as receitas não compreendidas no conceito de faturamento previsto no art. 195, I, “b”, na redação originária da Constituição Federal de 1988, previamente à publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998. COMPENSAÇÃO. PEDIDO REALIZADO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO EM FAVOR DO CONTRIBUINTE. QUESTÃO DE CONTEÚDO QUE DEVE SE SOBREPOR À FORMA. PREVALÊNCIA DA RATIO DECIDENDI DE PRECEDENTE PRETORIANO DE CARÁTER VINCULANTE COM A ADEQUAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 170-A DO CTN. Embora o pedido de compensação perpetrado pelo contribuinte tenha se contraposto à literalidade do art. 170-A do CTN, ao final do processamento judicial a lide por ele proposta foi julgada procedente, com base em precedente vinculante do STF. (RE n. 357.950) o que, por sua vez, faz convocar em seu favor o disposto nos artigos 489, § 1o, inciso VI, 926 e s.s., todos do CPC/2015, bem como o disposto no art. 62, § 1º, inciso II, alínea “b” do RICARF e, ainda, ao prescrito no art. 2o, inciso V da Portaria PGFN n. 502/2016. Recurso voluntário provido para sujeitar a Administração Pública ao precedente vinculante do STF (RE n. 357.950). Pedido de compensação a ser analisado pela instância competente apenas para fins de apuração quanto a adequação do montante compensado.” (CARF – Acórdão nº 3402-005.025; 3ª Seção, 4ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, Rel. Conselheiro: Diego Diniz Ribeiro, Julgado em 28/03/2018) – Grifos Acrescidos.

Com base nos excertos acima se pode observar que a interpretação harmoniosa do art. 170-A do CTN com o princípio constitucional da duração razoável do processo e ainda com a estipulação do sistema de precedentes vinculantes se faz sem uma priorização daquela limitação ao exercício da compensação. Até mesmo porque, a prestação jurisdicional não consistiria na efetiva compensação, mas tão somente na declaração do direito a compensar o indébito (cuja origem se tem como imutável, haja vista decorrer de situação material já definida na jurisprudência em favor do contribuinte em sede de pronunciamento vinculante), sendo que o crédito efetivo somente seria verificado administrativamente pela própria Receita Federal, portanto, em nada ferindo a legislação tributária.

Isto posto, nos parece possível ver declarado o direito a compensar o indébito pautado em tutela de evidência, sem que, para tanto, seja necessário aguardar até o fim do processo.

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[1] JFSP. Ação n. 5007628-70.2017.4.03.6100, 5ª Vara Federal, DJe: 24/07/2017

[2] JFRJ. Ação Ordinária n. 0030990-09.2017.4.02.5101, 28ª vara Federal. DJe: 31/07/2017

[3] CARF – Acórdão nº 3402-005.025; 3ª Seção, 4ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, Rel. Conselheiro: Diego Diniz Ribeiro, Julgado em 28/03/2018.