DISCURSO DE POSSE DE IVES GANDRA MARTINS NA ACADEMIA PAULISTA DE HISTÓRIA

A civilização grega nasceu por força de três elementos que determinaram o seu perfil histórico e a sua permanência no tempo. São, a saber: o céu, as montanhas e o mar.
Sem eles, não teria sido conformada toda a civilização, em que a cultura helênica, no seu quarto final, influiria, tão decididamente, os romanos.
Graças ao céu, quase sempre claro e que, durante a noite, restava sem nuvens, servindo de bússola aos navegantes, os gregos se atiraram à experiência marítima. Tornaram-se navegantes.
O mar lhes permitiu, por outro lado, a aventura pelo universo do Mediterrâneo. Cercava toda a Grécia, mais uma península do que nação continental. A própria civilização cretense, que está nos primórdios da cultura grega, viveu do mar e sua queda deu-se pelo mar, quando os aqueus a derrotaram, em 1450 antes de Cristo, tomando sua capital, Cnossos, e conquistando a ilha inteira.
Magna Grécia, a Grécia Asiática, a Grécia extracontinental foram fruto, pois, dos dois elementos: mar e céu.
O terceiro elemento também teve especial relevância. As montanhas. Estas impediram que os gregos se tornassem um único império ou mesmo uma única república.
As montanhas da Grécia separaram seu povo e o fenômeno político se resolveu nas cidades-Estados, influenciando de tal forma toda a civilização posterior, que até hoje a condução das nações é entregue aos “políticos”, vocábulo cuja origem está na palavra “polis”, ou seja, cidade.
Graças às montanhas, os gregos raramente se uniram. Só frente a inimigo comum ou ao tempo de Alexandre, o Grande, num império que durou o lapso de um relâmpago –brilhante e logo após se repartindo entre seleucídas, lágidas e aquemênidas. Graças ao céu lançaram-se ao mar, pois aprenderam a navegar orientados pelo mapa estelar e graças ao mar conquistaram e transmitiram sua fantástica maneira de ser e de pensar. Suas lições na filosofia, história, teatro, literatura, pintura, escultura e arquitetura permanecem até hoje.
Caríssimos Confreiras e Confrades, senhoras e senhores, o que acabo de dizer foi a primeira aula que ouvi de Eduardo França, quando ainda um jovem colegial, passei a ser seu aluno, no Colégio Bandeirantes, contendo a respiração pela clareza com que explicava a história, a originalidade de seus enfoques e a vivacidade das descrições.
Lembro-me, como se fosse hoje, de quando nos narrou a batalha de Kadesh, na qual os hititas derrotaram os egípcios, aqueles conduzidos por Muwatali III e estes por Ramsés II. Tinha eu a impressão de que jamais o cinema poderia, com todos os recursos da época (ano de 1950), reconstituir tal batalha, como Eduardo França o fizera. E creio que até hoje, com todos os efeitos especiais, dificilmente o faria como aquele mago da palavra e da história o fazia. Os alunos mal respiravam. Ninguém falava, na classe. O único som era o das palavras descortinadoras do passado, de Eduardo França.
O que me impressiona é que até hoje –sentado que estava, sempre, na primeira fila—guardo a lembrança do esguio mestre, levantando-se da cadeira atrás da pequena mesa e andando pelo estrado, para revelar segredos pretéritos a adolescentes de 15 anos. E a lembrança é, ainda hoje, tão viva como se ainda estivesse vivendo aqueles dias da meninice.
Certa vez, enquanto caminhava, de um lado para o outro, na sala de aula, explicando a história e narrando os acontecimentos que a marcaram, passou na minha frente, pegou o livro que estava sobre a minha mesa –“Le gênie du Christianisme” de Chateaubriand— fitou-me e pediu para que eu ficasse após a aula. Perguntou-me, então, porque escolhera aquele livro para ler. Expliquei-lhe –não era um católico convicto, à época, tendo, então, mesmo sérias dúvidas sobre a religião— que o estava lendo, porque, no período pós-revolução francesa, Chateaubriand exercera decidida influência na recuperação dos valores cristãos. E, com a petulância própria de um menino que desconhecia o catolicismo, expliquei que, com a leitura da obra, queria ver se os seus argumentos me convenceriam.
Ele apenas sorriu. Perguntou-me por que preferira ler a obra em francês. Disse-lhe que era a edição que meu pai tinha em casa e que todos em casa estudavam o francês, pois papai trabalhava para uma firma de Provence. Deu um novo sorriso e dispensou-me. Durante todo o tempo em que foi meu professor de História, em todas as aulas, a partir daquele episódio, sempre teve uma deferência por mim, de tal ordem, que cogitei de prestar vestibular para a Faculdade de História e Geografia e não para Direito, tendo sido dissuadido por meu pai que, sabiamente, disse-me, um dia: “O historiador é como o poeta, nato; vale a pena estudar história, mas é fundamental ter uma profissão tradicional”. Chegamos, os dois, à conclusão que um título de advogado seria útil para meu futuro.
Nem meu pai, nem Eduardo França, nem eu mesmo, imaginávamos que, um dia, para mim, a advocacia seria mais do que um título de bacharel.
Volto, todavia, a meu professor França. Todos nós, do Colégio Bandeirantes, que fomos seus alunos, aprendemos algo sobre a civilização grega: todas as lendas gregas, em que seus heróis eram protegidos ou perseguidos pelos deuses, diziam respeito a algum fato histórico, temor ou aspiração. Lembro-me –apenas para exemplificar— que, ao falar de Teseu, de Ariadne e do Minotauro, relacionou a queda de Cnossos à revolta interna dos aqueus, que eram trazidos como escravos para Creta. Ariadne seria o símbolo destes escravos gregos, que se revoltaram contra os cretenses, facilitando a invasão acaica pelo mar, ao orientarem os invasores (o fio de Ariadne). Teseu, encarnaria os gregos vindos da Grécia, matando o Minotauro, este personificando o povo de Creta, que todos os anos, trazia do continente uma cota de escravos gregos. E assim lecionava Eduardo França, tão admiravelmente, que, mais de 50 anos depois, lembro-me, como agora o faço, de suas aulas.
Graças a ele, comecei a gostar de História. Da História dos grandes feitos e da História do cotidiano, aquela que a escola francesa tanto realça. Como dizia Paulo Nathanael (discurso de posse na Academia Paulista de História), passei a gostar daquela História que, “libertada tanto das amarras do oficialismo, quanto das fantasias da teleologia ideológica, busca sua autenticidade nos três tempos braudelianos: o tempo geográfico, o tempo social e o tempo individual” .
Hegel, em sua genialidade e sinalizações não resolvidas –que veio a influenciar toda uma leva de filósofos, até hoje, inclusive, no tridimensionalismo dinâmico do Direito, o nosso insuperável Miguel Reale– dá início ao que chama a filosofia da História e de diversas outras ciências e artes. Na sua “Fenomenologia do Espírito”, descerra a natureza especulativa do ser humano, numa visão pessoal, mas que se projeta para a intelectualidade futura, com uma força que raramente se viu, na filosofia. Ao lado de Sócrates, Platão, Aristóteles, Aquino, Descartes e Kant, conforma toda a filosofia do mundo atual, como ensina nosso presidente Luiz Gonzaga Bertelli, ao desenhar a dimensão histórica, ou seja, que a perspectiva temporal, por apreciar os fatos em sua dinâmica, é aquela que oferece as melhores condições para entendimento do mundo (“Lições para a cidadania” em “São Paulo – Uma longa história”, pg. 9, Ed. CIEE e APH).
Ora, a filosofia hegeliana, deve-se, entretanto, receber com os temperos necessários, principalmente, em afirmações como “Tudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real”, ou de que o caminho dialético –de longe, a melhor parte de seu pensamento, visto que apenas instrumental e não especulativo—é aquele que permite ir da consciência finita para o absoluto infinito e que este caminho absoluto nos permite alcançar, por nós mesmos, a história da humanidade e a história de cada um.
Embora genial, ao dizer que a história é o desdobramento do Espírito, no tempo, do mesmo modo que a Natureza é o desdobramento da idéia, no espaço –com o que valoriza apenas os grandes acontecimentos e os grandes homens– peca ao tornar o indivíduo sem relevo, na sua conformação, nada obstante a história desenvolver-se não só com os grandes homens, mas também com as realidades cotidianas de um povo, de uma cultura, de uma civilização, em especial, elementos que terminam por gerar a maneira de ser diferenciada na história das gentes.
Exemplo que me parece gráfico, para esta interação entre os grandes homens e a sociedade –para Hegel sem valor de decisão—, está no momento maior da conformação das leis, que é o processo constituinte. Se analisarmos os três modelos clássicos do Constitucionalismo moderno, veremos como os grandes homens –ou apenas líderes— que os fizeram acontecer, somente exteriorizavam a consciência coletiva de seus povos. Os ingleses, na “Magna Carta Baronorum” –até hoje sua Constituição—, estabeleceram critérios de equilíbrio entre a sociedade, representada pelos barões e o poder, por João Sem Terra (1215). Conformaram, pois, sua lei maior à luz desta visão, sendo tal dinâmica constitucional aquela que prevalece até hoje, por corresponder às aspirações da gente inglesa. A Constituição americana, em 1787 promulgada, ao contrário, colocou povo e governo subordinados a um ideal maior de pátria, razão pela qual é difícil compreender as ações dos americanos, sem que se compreenda que suas instituições estão acima dos homens que as encarnam e que, sempre que possível, se isolam da humanidade, como ocorreu com os ideais de Wilson, depois da 2ª. guerra mundial, sepultados pela não-adesão à Sociedade das Nações, ou mesmo com Bush, na atualidade, em que suas decisões, como ele próprio disse, não são para o mundo, mas para proteção do povo americano. Essa visão, embora equivocada, nos métodos adotados –a fracassada guerra contra o Iraque, a título de defesa da gente americana é prova do que digo– em verdade, exterioriza o sentimento de um povo que vê, no ideal de suas instituições e na sua maneira de ser, algo acima dos interesses de outros povos e de outras nações.
Por fim, o modelo constitucional francês, descortinado desde a revolução de 1789, em que o cidadão é a razão de ser da lei maior, permite até hoje aos franceses valorizarem a cidadania acima do Estado, como sempre foi colocado, nas diversas alterações de sua lei suprema e em seu hino. Tanto é assim que, as negociações sobre os subsídios agrícolas, na União Européia, não avançam, exclusivamente, por pressão da França, que assim age por exigência de seus cidadãos agricultores, nada obstante o custo orçamentário e social que os subsídios agrícolas acarretam para o país e para a Europa, representando, inclusive, sérios entraves ao entendimento com o Mercosul.
O certo é que a história se faz, em determinado espaço, à luz de sua dimensão individual e da sua dimensão coletiva representada pelos governos, que, de rigor, são o Estado, pois, como dizia Helmut Kunh, “o Estado é uma mera estrutura do poder”.
E, aqui, faço uma relação, que me parece muito clara, entre o Direito e a História. A História é, de rigor, o Direito dos povos. Não há História, sem Direito. Não há Direito, sem História. Desde os povos primitivos, o direito governa a História da humanidade.
No clássico exemplo de Robinson Crusoé, enquanto estava ele só, na ilha, não tinha necessidade do Direito, mas tão logo lá chegou Sexta-feira, o direito passou a reger a relação entre ambos, definindo quem mandava, quem obedecia e de que forma compartilhariam a ilha. O direito é um fenômeno social, razão pela qual “ubi societas, ibi jus, ubi jus, ibi societas”. Onde está a sociedade, está o direito, onde está o Direito está a sociedade. A história de todos os povos, portanto, é a história do direito que os organiza, que está em curso, que é rompido e substituído por aqueles que os governam e os guiam em direção a seu destino, conforme a maneira de ser das diversas culturas e civilizações.
Todas estas digressões são para mostrar como o jurista é um historiador em potencial e o historiador é um jurista em potencial, visto que história e direito estão umbilicalmente ligados.
Sinto-me, pois, à vontade para revelar meu amor à história, apesar das limitações de meu pensar e de meu ser. Vivendo no mundo do Direito, não posso deixar de viver no mundo da História.
É, portanto, com particular emoção que ingresso nesta Casa para ocupar a Cadeira de que é patrono Afonso d`Escragnole Taunay, historiador e lexicólogo nascido em Florianópolis, nos idos de 1876, e falecido em São Paulo, em 1958 –ano em que me casava com a minha companheira de toda a vida, mãe de meus filhos e minha eterna inspiradora, Ruth, destinatária permanente de meu viver e de meu amor; ano em que também nos formávamos, os dois, pelas velhas Arcadas. Filho de Alfredo d´Escragnole Taunay, Visconde de Taunay, o imortal autor de “A retirada da Laguna”, escreveu, em 1910, o romance histórico Leonor de Ávila, em que há influência indiscutível da glória paterna e de seu professor Capistrano de Abreu. Publicou, de 1924 a 1930, os 6 primeiros volumes de sua “História geral das bandeiras paulistas”, que completaria, mais tarde, em 1950, com 11 volumes, no total. Escreveu uma História do Café, em 5 volumes (1930-1943), sobre ter publicado os Anais do Museu Paulista e colaborado intensamente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, além dos diversos Institutos estaduais. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, da qual seu pai foi um dos fundadores. Não só na história, como na lexicografia e na linguagem técnica foi um mestre, com diversas obras publicadas.
É este o patrono da cadeira que agora assumo.
Sobre meu professor Eduardo de Oliveira França, tenho a dizer que nasceu em Queluz, em 2 de abril de 1915, no Vale do Paraíba, herdeiro de uma família de professores, tendo-se destacado na escola como um de seus melhores alunos. Conta-se que, quando, em 1922, a população da cidade bloqueou a estrada de ferro que passava por sua cidade, para que o Presidente Epitácio Pessoa e o Rei Alberto da Bélgica lá parassem, Eduardo França ficou decepcionado ao ver um rei sem coroa e sem cetro, apenas vestindo uma farda. Em 1932, seu pai, Américo, procurou dissuadi-lo de participar da Revolução de 1932, mas não o conseguiu. Já em 1930 fizera apaixonado discurso contra Getúlio, no colégio em que estudava. Serviu de mensageiro, durante a Revolução paulista, entre as tropas na linha de frente, pois era rápido em levar mensagens de um lado ao outro das trincheiras. Estava alistado no Batalhão Francisco Chaves. O interessante é que, por ser mensageiro, como dizia, “as balas assoviavam sobre nossas cabeças e chegava-se a ouvir os insultos das tropas inimigas”.
Em 1937, formou-se em Direito e Filosofia. Foi professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, tendo sido aluno de Fernand Braudel e Pierre Monberg e colega de turma de Eurípedes Simões de Paula e Astrogildo Rodrigues de Melo. Na segunda vinda ao Brasil do Prof. Fernand Braudel, foi seu assistente e de Emile Leonard, tendo assumido a regência da cadeira de História moderna e contemporânea. Casou-se, pela primeira vez, em 1937, enviuvando em 1972. Casou-se, então, com a colega Sonia Siqueira, de quem teve 2 filhos (Fernando e Maria Isabel). Foi professor visitante da Universidade de Coimbra e chegou à diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1975, mas renunciou ao cargo, quando pressionado pelo governo de exceção, recusou-se a delatar os alunos considerados subversivos. Dirigiu a Escola de Comunicações e Artes da USP, tendo se aposentado em 1985, mas trabalhado até o fim de sua vida. Eis a figura maiúscula que sucedo.
Uma palavra, antes de encerrar, de agradecimento a seis amigos meus, aqui presentes. Douglas Michelany, João Monteiro Filho, Álvaro Stéfani, Luiz Gonzaga Bertelli, Miguel Reale e Paulo Bomfim, patrocinadores de minha candidatura a esta Casa. Um, foi admirável presidente do Sodalício, a quem muito a Academia deve. O outro, é dono da mais ética televisão do Brasil, que, na família, vê o futuro da sociedade, e o terceiro, industrial que honra os meios empresariais, na luta por melhores dias.
Ao atual presidente, Luiz Gonzaga Bertelli, meus profundos agradecimentos por tudo que tem feito pelo Brasil. Sendo um dos maiores conhecedores de questões energéticas do país, é também um admirável cultor das letras e da história e um fantástico ourives da palavra, sendo suas peças literárias e históricas verdadeiras lições de como bem escrever.
Sobre Miguel Reale não há o que acrescentar. É apenas o maior jurista e o maior filósofo das Américas.
E, por fim, a Paulo Bomfim, companheiro dos bancos acadêmicos –que me ensinou a amar o soneto inglês– príncipe dos poetas brasileiros, por merecimento, poeta que ombreia com os que o antecederam, Olavo Bilac, Olegário Mariano, Menotti dell Pichia, Guilherme de Almeida, sendo hoje de nossas maiores expressões culturais. Fidalgo e mestre. Mestre de todos, a quem dedico uma amizade estreita e nunca estremecida, desde o distante ano de 1954, quando, há 50 anos, Ruth e eu ingressávamos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e eu o conheci.
Aos seis, à minha família, e a todos os amigos que me apoiaram e aqui presentes, os meus sinceros agradecimentos.
E chegou o momento de terminar. Ingresso nesta Casa com a alegria de quem sempre a aspirou, mas que nunca acreditou que nela merecesse ingressar. Estou convencido de que a História é a mãe do futuro. Todos deveriam reverenciá-la, pois nas experiências passadas forjam-se os acontecimentos do porvir. Os estudos antecipatórios só existem, à luz da História. Cheguei a propor, no livro “O direito do Estado e o Estado de Direito”, de 1977, que todos políticos, burocratas, juízes e militares estudassem História para aprenderem com o passado a não errar no futuro. A História é a luz dos tempos clareando as estradas do amanhã. Por esta razão, nesta Casa, em que se cultiva o amor a esta Ciência da Vida, entro com a certeza de que todos nós somos colecionadores do intemporal. Câmara Cascudo, por ter o hábito de admirar o crepúsculo, às margens do Potengi, se auto-denominou um “Colecionador de Crepúsculos”. Nós, nesta Casa, em verdade, à luz do tempo pretérito, somos, de rigor, “Colecionadores de Alvoradas”. Muito obrigado.

Fonte: assessoria de imprensa